Por Flávia Figueirêdo | Site Mar Bahia
Se há uma embarcação que é a alma da Baía de Todos-os-Santos é o Saveiro de Vela de Içar. E se hoje restam apenas poucas dezenas dos milhares que já navegaram e fizeram a história cultural e econômica da Bahia e do Brasil, uma notícia afaga o coração dos apaixonados pela Vela Tradicional: o retorno em grande estilo do centenário saveiro Sombra da Lua.
O “Sombra”, como é carinhosamente chamado, renasce novo em folha, após uma reforma que começou do zero e durou seis anos, sendo que dois deles foram o hiato da pandemia do Coronavírus. Essa foi a terceira reforma do barco; a primeira foi em 2006 e a segunda em 2010. A mais recente foi uma reestruturação completa do barco, que agora é um “jovem senhor” de 100 anos.
O Mar Bahia navegou um pouco por essa história, acompanhando os estágios da reforma e conversando com o velejador, contador de histórias, boêmio e um dos fundadores da Associação Viva Saveiro, Roberto Bezerra (Malaca).
“O Sombra da Lua foi construído pelos idos de 1923 ou 1925, não há um registro histórico específico porque a base do “nascimento” dessas embarcações são os carpinteiros, calafates e mestres saveiristas que conservam o seu conhecimento, basicamente na oralidade”, explica Malaca.
Alguns poucos registros contam que o saveiro original foi construído pelo Mestre José Simão em Capanema, recebendo o nome de "Flor de Capanema", em uma pequena localidade dentro do Rio Paraguaçu, passando ainda pelas mãos de Mestre Bartô, já com o nome de "Sombra da Lua", e atualmente comandando pelo experiente mestre Jorge. A reforma atual foi feita no estaleiro de Mestre Alipio, pelo seu filho, o mestre carpinteiro naval Cosme Mendes Rocha, no bairro do Lobato, em Salvador.
“Todos os recursos para que essa reforma e esse sonho fossem possíveis não veio de nenhuma ação ou apoio governamental, mas de sócios, voluntários, fotógrafos, artistas e apaixonados pela cultura dos saveiros, que através de rifas náuticas, vendas de livros e doações, materializaram essa proeza”, destaca Malaca.
O Mar Bahia também conversou com Pedro Bocca, diretor da Associação Viva Saveiro, e que participou de todo o processo de reforma do Sombra da Lua. Segundo ele, as maiores dificuldades encontradas ao longo destes anos foram o desgaste que o barco já se encontrava (e que foram aceleradas durante a pandemia), além de outros fatores como conseguir toda a madeira necessária para a sua reconstrução.
“O saveiro usa muita madeira em sua estrutura, a madeira não é um costado contínuo, como os barcos modernos, por exemplo. O casco são peças de madeira unidas que precisam ser calafetadas, em um grande quebra-cabeças que demanda experiência e sabedoria. Além disso, conseguir esse material (madeira de jaqueira, já que as outras madeiras de lei não são permitidas), demanda mais tempo e burocracia”, conta.
Outra grande dificuldade é ainda mais preocupante, que é a escassez da mão-de-obra que detém esse saber ancestral. “ A extinção de profissões e fornecedores específicos como carpinteiros navais, calafates, confecção de velas...tudo isso hoje em dia já é muito difícil porque poucos querem continuar esse legado”, complementa Pedro, que comemora a superação de todo esse processo.
“A sensação de ver o barco vivo e lindo como está é um orgulho e alegria muito grande. Porque isso só foi possível devido à mobilização de todos os apoiadores que ajudaram financeiramente e amorosamente, tornando tudo isso possível”, confessa.
Para coroar essa conquista, o Sombra da Lua retornará em grande estilo na Baía de Todos-os-Santos, participando da tradicional Regata Aratu-Maragojipe neste sábado (24/08) – coincidentemente 100 anos após a sua construção original.
“Os saveiros sempre foram parte da Aratu-Maragojipe e este ano o Sombra volta a navegar, juntamente com o “ É da Vida”, também como uma maneira de divulgar os saveiros e a sua importância”, destaca Malaca.
Novos rumos
De embarcação de cargas à embarcação de turismo. Preservando a sua estrutura, mas com componentes totalmente novos, o Sombra da Lua agora deve ter uma outra finalidade: propiciar a baianos e turistas a experiência fascinante e secular que é velejar em um saveiro, passando por pontos históricos e culturais da Baía de Todos-os-Santos.
“ Nossa intenção é que o barco fique ancorado em Salvador. O objetivo é que o Sombra da Lua se torne uma vitrine e um símbolo de resistência, já que na capital não existe mais nenhum saveiro. É importante dizer que os saveiros podem até acabar, mas esse vai continuar e isso não tem preço! As pessoas e o poder público precisam saber que não se trata só de dinheiro, mas de cultura e memória do lugar onde vivemos”, desabafa Malaca.
Coincidentemente, é próximo à Rampa do Mercado Modelo, onde os saveiros já foram milhares, que o Sombra da Lua pode voltar a aportar. A mesma Rampa imortalizada por Jorge Amado, Pierre Verger, Carybé e tantos outros apaixonados que eternizaram o lugar de onde jamais os saveiros deveriam deixar de navegar e serem protagonistas. Saravá.
RAIO X DO SOMBRA
· 12,5m (comprimento) x 4m (largura)
· Mastro de 85 palmos (equivalente a 17m de altura)
· Carangueja (Retranca) - 4m
· Calado - média de 60cm
· Capacidade de pessoas: uma média de 20 a 30 pessoas
DICAS
Para ir:
Exposição Bel Borba no Museu de Arte da Bahia
Para assistir:
Documentário de Guido Araujo, “A morte das Velas do Recôncavo” de 1975.
Para ler:
Viva Saveiro
Para ver:
Coluna da Viva Saveiro no Mar Bahia:
GALERIA
Fotos: Pedro Bocca
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