Mergulhador
Um homem grande. Voz grossa, mãos grossas, cabelos brancos e os olhos que parecem
sempre marejados de água salgada. Nos braços, um símbolo de pirata e um brasão que carimba a linhagem de José Francisco Dortas, 71 anos, baiano, mergulhador, contador de tantas histórias quanto as que povoavam o universo de boemia e maresia nas docas de Jorge Amado.
A relação com as águas veio muito antes de trabalhar sob elas. “O fascínio pelo mar sempre existiu. Morava na península de Periperi, depois na de Itapagipe, praticamente cercado pelo mar tranquilo da Baía de Todos os Santos, cujas águas, de acordo com meu primo e notável artista plástico, o Mestre Calá, dizia que é para o baiano como o líquido amniótico está para o feto no ventre da mãe”. Após algumas experiências com pesca submarina, era a vez de conhecer os cilindros de ar. “Comecei a mergulhar pela primeira vez com cilindro (era raro na época) na década de 60 e neste mesmo ano meu pai, que tinha medo de mar, morreu.
Então, veio a atividade de mergulho profissional. Alguns amigos me perguntaram se eu não queria participar de uma obra sub em Madre de Deus, em 1967. Eles usavam equipamentos pesados, com escafandros, e eu, mesmo sem ter nenhum curso profissional, comecei a trabalhar neste meio. Sou formado engenheiro civil e quando comecei a mergulhar eu nem sabia o que era descompressão. Sou um autodidata que foi aprendendo e se reciclando ao longo do tempo”.
Os naufrágios e os tesouros
Após a ampliação do quebra-mar norte do Porto de Salvador e das muitas descobertas de petróleo, Dortas conheceu o Cap Frio, um navio a vapor que naufragou na Barra em 1908. “Exploramos constantemente este naufrágio, depois mergulhamos no Galeão Sacramento (naufragado também na Barra), orientados por um pescador que disse que sempre vinha em seus anzóis muito chumbos e santos. De início, não levamos muito à sério, mas, de fato havia uma enorme riqueza submersa. Nessa época não havia fiscalização nem a burocracia que há hoje; cheguei a subir mais de 3 toneladas de cobre de um só naufrágio...Imagine...”. Dono de um vasto acervo de porcelanas, garrafas, madeiras, e inúmeras relíquias de valor inestimável, Dortas acredita que retirou mais de 500 peças do fundo do mar ao longo dos anos.
"Se eu não tirasse, outro ia tirar. A vida é assim. Quando eu peguei não havia crime nisso. E te digo mais: não conheço um acervo oficial que tenha o nome do mergulhador que doou as peças, sobretudo do Galeão Sacramento. Não há reconhecimento pelo que fazemos. Você já viu em algum museu: “Pescadores acharam tal artefato?”, “Mergulhador tal achou tal porcelana?” Não. Então, está tudo certo, elas por elas".
"As pessoas acham que cultura é ter a casa enfeitada por um decorador. A minha casa abriga um pouco da minha história e muito de uma história submersa do mar da Bahia”.
E se a pergunta descambar pelas lendas de ainda existirem tesouros escondidos em plena Baia de Todos os Santos, é direto. “Os tesouros submersos existem ainda...Mario Mukeka que o diga! (Risos). Mas, existem sim, escreva o que estou dizendo porque isso não é fantasia, é realidade. Agora, quem achá-los, você acha que vai contar? Eu não contaria! (Risos)”.
Recifes Artificiais
Realidade em algumas capitais no Brasil, sobretudo em Recife, e em todo o mundo, os recifes artificiais ainda não são uma realidade na Bahia, onde todas as condições favorecem a exploração e o turismo náutico. De modo resumido, os RAS, como são chamados, consistem em afundar intencionalmente embarcações ou estruturas obsoletas, de forma estratégica para atrair e criar vida marinha ao seu redor. Perguntado sobre esta questão, Dortas é taxativo. “Lamentavelmente, o melhor ponto de mergulho que tivemos aqui foi o Cavo Artemidi, mas os naufrágios vão se assoreando, sumindo. O mar engole o que sobrou e aquela história vai morrendo naturalmente pela própria força da natureza...Os naufrágios hoje já quase não têm a estrutura dos navios".
"O mar vai bebendo e comendo tudo que é dele, vai transformando as coisas em outro tipo de matéria. Os recifes artificiais seria um grande negócio para Salvador. É um absurdo que a BTS não tenha esse tipo de atrativo de mergulho; uma vergonha para a Bahia”.
Aleixo Belov e Lev Smarcevscky
Viver uma vida inteira no mar proporcionou a Dortas muitas histórias e grandes amigos. Dono de um sincretismo ímpar, costuma acertar nas intuições que prevê. “Vi o crescimento de toda a industrialização ao redor da Baía de Todos os Santos e Aratu. Dow Química, Tibras, Petrobras. Também conheci grandes homens. Mas, em 2006 fiquei sem contrato de trabalho...já estava com 60 anos e não sabia como ia ser o futuro. Um dia, no Porto da Barra, liguei para Aleixo Belov (navegador ucrano-baiano que está em sua quarta Volta ao Mundo) e disse que estava vendendo minha lancha. A conversa evoluiu, vendi a lancha e em 2007 comecei a trabalhar para ele, a quem conheço há 50 anos e para quem trabalho até hoje. A gente briga sempre, mas a amizade prevalece. Somos dois velhos ranzinzas" (Risos). Outro ícone do mar da Bahia, o pintor, escultor, navegador e um dos maiores entusiastas dos saveiros na Bahia, o russo Lev Smarcevscky, também está na sua memória. “Era inevitável nos encontrarmos casualmente porque tínhamos o mesmo universo em comum.
Lev tinha uma marcenaria em Cotegipe e era um homem calmo, gentil, sempre leve, simpático e tranquilo. Posso dizer que, mais do que bens, tive chances na vida que só o mar da Bahia me deu”.
O mar da Bahia
“Temos na Bahia uma coisa que tem em poucos lugares do mundo: águas quentes,
muita vida, ecossistemas e uma água azul na beira da praia. Isso aqui é inacreditável, sobretudo no perímetro urbano. O ruim é que isso não é aproveitado”. Após participar mais recentemente da recuperação estrutural do Forte São Marcelo, Dortas está finalizando a construção de seu barco, batizado de Cidade Baixa. A escolha do nome, ele explica. “Uma das visões mais incríveis da BTS está na Cidade Baixa; é você poder chegar na beira mar da Penha, maré cheia, de tardinha...Eu sou suspeito, mas a Cidade Baixa é demais, assim como o homem do mar da Bahia, que é um homem diferente".
"A gente tem poesia... Vivi o universo da Baia de Todos os Santos a minha vida inteira e é nele que quero ficar e navegar até morrer”.
Fotos: André Lima/Mar Bahia/Francisco Dortas
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